segunda-feira, 23 de março de 2009

Um padre no terreiro














"O Cristo foi o iniciador da moral mais sublime: a moral evangélico-cristã, que deve renovar o mundo, aproximar os homens e torná-los irmão."

Padre André acabava de chegar naquela comunidade do interior paulista. Como sempre fazia quando era transferido para novo local de trabalho, caminhava horas a fio pelas ruas com a finalidade de conhecer as pessoas do lugar. Ainda bastante jovem, era dinâmico e muito sorridente, o que cativava a simpatia de seus paroquianos.
A apenas um dia de sua chegada, quando ainda não havia rezado a missa dominical de apresentação, Padre André fazia sua caminhada matinal e, ao passar por uma esquina, observou um grande número de pessoas que ali se aglomeravam, chamando a atenção entre risos e brados de indignação. Aproximando-se, houve um silêncio respeitoso diantes de sua presença, que foi quebrado por uma senhora idosa que, demonstrando desconforto, bradou:
- Veja, seu Padre que absurdo o que fazem esses macumbeiros! É preciso que o senhor mande fechar esses lugares do demônio que proliferam aqui em nossa cidade.
Padre André pôde observar que na esquina havia uma oferenda em que restos de uma ave, entre outras coisas, causavam um cheiro muito ruim e atraíam moscas.
Solicitou que as pessoas se afastassem, pois ele mesmo daria um jeito de retirar aquele material para evitar o encômodo que causava aos vizinhos do local.
- Eu, se fosse o senhor, não mexeria nisso! Isso é feitiço e pode até matar uma pessoa - ousou ainda desabafar a indignada senhora.
- Não se preocupe, minha senhora. Pode voltar tranquila para sua casa.
Padre André já havia passado por muitas situações desconsertantes e improvisos de toda ordem nos poucos anos de seu sacerdócio, mas era sua primeira experiência em juntar oferenda de esquina. Com uma brave oração à São Francisco de Assis, a quem considerava seu amparador, pediu proteção e intuição de como deveria agir.
Olhando ao redor, observou uma caixa de papelão e dela fez uso para, com todo o respeito, recolher com um pedaço de pau a oferenda que estava colocada em uma bandeija de papel. Com a ajuda de um menino e de uma pá, andou algumas quadras e, em um terreno baldio, cavou e enterrou o material, uma vez que sabia que a terra logo trataria de desitegrar tudo aquilo. Antes, tomara o cuidado de retirar os materiais que não se deteriorariam no solo, como um copo plático e uma garrafa de vidro, e depositá-los em uma lixeira.
O menino, curioso e ao mesmo tempo sentindo-se previlegiado por ter sido escolhido como ajudante do Padre, não poupou as perguntas:
- Seu Padre, é verdade que isso é feitiço e que é feito para o mal das pessoas?
- Não posso lhe afirmar como que intenção isso foi feito, meu filho. O que posso afirmaré que o maior erro está em sacrificar um pobre animal e, ainda por cima, expor seus restos em um lugar público, causando mal cheiro e transtorno às pessoas que usam a via.
- Mas isso não é coisa oferecida para os maus espíritos? Minha mãe sempre me fala pra não chegar perto dessas coisa, pois ali está cheio de maus espíritos.
Padre André não pode deixar de sorrir e completou.
- E você sabe o que é um "mau espírito"?
- Sei não, seu Padre!
- Ah, então deixa assim. Vai jogar bola com os garotos e tenha um bom dia.
- Sua benção, Padre.
Na caminhada de volta à igreja, o Padre parou para conversar com um senhor idoso que calmamente assobiava enquanto juntava em uma sacolinha os papéis e plásticos que encontrava jogados entre as flores da praça.
Encantado com o gesto, cumprimento amigavelmente o homem que, ao vê-lo, o saudou reverentemente.
- Bom dia, Padre. Muito prazer em conhecê-lo. Sou Justino, e moro nesta cidade há mais de quarenta anos.
E com um sorriso completou:
- Então, o senhor é o Padre que juntou a oferenda da esquina onde mora dona Mariana.
- Bom dia, seu Justino. Sou eu mesmo, mas como o senhor já sabe disso, se faz alguns minutos apenas?
Sorrindo mais ainda, Justino falou:
- Padre, cidade pequena é assim. Funciona o telefone sem fio numa rapidez incrível!
Agora quem sorria com vontade era Padre André.
- Estou vendo o senhor juntar o lixo da praça. Parabéns, seu Justino.
- Ah, Padre, faço isso todas as manhãs, pois estou aposentado e enquanto faço minha caminhada matinal aproveito e recolho coisas que as crianças deixam na praça, ou que o vento trás das ruas.
- Louvável sua disposição. E vejo que faz isso com alegria.
- Sabe, a gente nesta idade já passou por tantes experiências de vida que resolve ou ser feliz ou ficar um velho azedo. Escolhi ser feliz, até porque minha vida é maravilhosa. Tenho família que me respeita, tenho saúde e tenho minha fé, que me sustenta nos momentos difíceis.
- Ah, mas que bom ouvir isso. E qual é sua fé, seu Justino?
A essa altura os dois procuraram um banco à sombra e ali se acomodaram. A pergunta do Padre André se dava em razão de ter observado que seu Justino carregava no pescoço uma corrente prateada com pequenos símbolos dispostos e intercalados.
- Sou umbandista, padre, com a graça de Oxalá - respondeu seu Justino, olhando para o alto, com a mão direita sobre o coração.
Encantado com o respeito daquele senhor pela natureza e também pelos seus Orixás, o padre entusiasmou-se em perguntar:
- Seu Justino, com todo o respeito, e deduzindo que o senhor conhece o assunto, gostaria de lhe perguntar sobre essas oferendas popularmente chamadas de macumba.
- Padre, tenho por costume levantar muito cedo e dar minha volta pela cidade. O trabalho que o senhor fez hoje de juntar da esquina aquele material, eu tenho feito quando encontro isso no caminho. Começo esclarecendo ao senhor que esse tipo de oferenda não é realizado por adeptos de minha religião, a Umbanda - embora, por falta de conhecimento se atribuam aos umbandistas essas atitudes que considero um afronto ao bom senso e um desrespeito com as pessoas e a natureza. Sou umbandista há trinta anos, e hoje dirigente de uma casa de Umbanda, e lhe digo que nunca matei um animal para oferendar, e nunca sujei a natureza ou uma encruzilhada. Desta forma estaria agredindo os princípios dessa sagrada religião. Os irmãos umbandistas que fazem parte da nossa casa são instruídos a realizarem a limpeza dos sítios vibratórios da natureza, local sagrado em que se manifesta a força dos Orixás e que nos refáz as energias. Uma vez por mês, em um domingo, percorremos toda a extensão do riacho e limpamos suas margens e a cachoeira. Ness cachoeira, depois da limpeza, realizamos um pequeno culto aos Orixás, saudando as sete linhas da Umbanda através de nossos guias e protetores que nos presenteiam com sua presença e sua irradiação, deixando suas mensagens aos filhos da terra.
- Se Justino, a que o senhor atribui as oferendas das esquinas e encruzilhadas? Com todo respeito ao seu culto, sempre ouvi falar que isso era feito pela Umbanda.
- Infelizmente, padre, existe uma triste confusão em relação à Umbanda com outros cultos, que insistem em ser chamados de umbanda ou espiritismo pelo fato de usarem a mediunidade. A Umbanda é acima de tudo caridade desinteressada e, sendo assim, jamais vai contrariar as leis divinas que respeitam todas as criaturas e seres do universo. Não posso lhe dizer a quem pertence a responsabilidade desses "despachos" colocado em lugares estratégicos. O que sei é que, seja de quem for, eu respeito, mas não compartilho de suas idéias e não compactuo com seus métodos de trabalho. Afirmo categoricamente, baseado nas palavras do espírito iluminado que implantou a Umbanda em solo brasileiro, que isso não é trabalho de umbanda.
Impressionado com a sabedoria que exprimiam as palavras daquele homem simples, e vendo nele a dignidade tão em falta nas pessoas de hoje, o padre o abraçou, comovido, prometendo voltar outras manhãs para conversarem mais, já que neste dia muitas atividades o aguardavam.
De volta à igreja, padre André deparou com três senhoras que, ajoelhadas, pareciam rezar fervorosamente e que, ao vê-lo, vieram ao seu encontro, cheias de curitosidade.
- Como foi a conversa, padre? O senhor proibiu aquela gentinha de continuar fazendo seus despachos?
- Bom dia, minhas senhoras. Que Nosso Senhor Jesus Cristo as abençoe! De que conversa as senhoras falam?
- Com o macumbeiro, lá na praça.
- Estive conversando com seu Justino, com quem simpatizei muito.
Fazendo o sinla da cruz, as três senhoras o alertaram:
- Padre, ele é o feiticeiro que larga aqueles horrores nas esquinas. Eu mesmo já o vi de madrugadinha fazendo isso na esquina de casa.
- A senhora tem certeza do que fala? Não estaria ele retirando aquilo que estava na esquina e limpando a rua?
- Nada...ele é quem faz e coloca. Dizem até que tem criação de galo preto só para fazer esses feitiços e que cobra uma nota...
- Isso mesmo, padre. Falam até que a mulher dele, que é bruxa, usa de sortilégio para atrair pessoas e delas tirar dinheiro.
A outra senhora, com os olhos arregalados, esperava uma reação do sacerdote.
Calmamente, ele as ouviu dispararem suas ferinas línguas quais flechas envenenadas e depois, pedindo licença, despediu-se, convidando-as a participar da sua primeira missa dominical na cidade.
Em muitas outras manhãs, Padre André levantava bem cedo para poder encontrar-se com seu Justino e, juntos, caminhavam pelas ruas da cidade aproveitando a brisa matinal, momentos em que aprendia muito com aquele sábio homem.
- Seu Justino, vou lhe fazer uma pergunta que há muito fervilha em minha cabeça. O senhor já me explicou muito sobre mediunidade, mas como saber se somos médiuns? Eu poderia ser um deles?
Com largo sorriso, seu Justino responde:
- Jesus foi o maior médium que já encarnou aqui na terra. Médium do Cristo Cósmico, trazia dele as mensagens e luzes que espalhou por entre os homens em sua curta trajetória terrena. Usou isso para curar o corpo e a alma dos homens. Mas, por contrariar a convicção dos poderosos e ignorantes, como hoje ainda acontece, ele foi mal incompreendido e assassinado sob acusação de prática de feitiçaria. Muitos outros, antes e depois dele, desceram à Terra com essa missão mediúnica. E quase todos foram sacrificados, pelo orgulho e pelos interesses mesquinhos do poder. Mediunidade não escolhe religião para se manifestar; escolhe a necessidade do espírito em ressarcir erros passados ou vem como missão, como era o caso de Jesus. A mediunidade fornece oprotunidades de auxiliar o Criador na sua obra do bem, mas que por vezes é distorcida e mal-usada também.
Olhando firme nos olhos do Padre, seu Justino afirma, irradiado por seu guia espiritual:
- o senhor, padre André, é um missionário do bem e, como tal, dispõe da faculdade mediúnica que lhe foi dada para levar a verdadeira mensagem cristã ao coração dos homens, e por isso tem sido incompreendido dentro da Igreja e transferido seguidamente de paróquia.
Com os olhos banhados em lágrimas pela emoção que sentiu ao ouvir as palavras de seu Justino e também pela energia que o envolveu, dando-lhe um bem-estar muito grande, padre André lembrou de quantas vezes seus projetos de evangelização eram boicotados por seus superiores. Nunca havia entendido por que era tão discriminado e mal-interpretado dentro da sua amada Igreja.
naquele momento, depois de tantas conversas esclarecedoras e racionais daquele bom homem, ele compreendia o que significam seus "sonhos" com aquele que considerava um "anjo" e que, agora sabia, eram encontros em desdobramento do sono com seu protetor espiritual. Compreendia as suas "visões" de coisas que outras pessoas não enxergavam e até sorria ao lembrar o dia em que, na hora da distribuição da sagrada comunhão, a hóstia havia caído de suas mãos pelo susto da visão que tivera. Ao ofertar a comunhão para uma pessoa, esta abriu a boca e dela saiu uma língua de duas pontas, como a de uma cobra que sibilava. Outras visões de seres iluminados ou seres enegrecidos junto às pessoas eram comuns durante sua missa.
Padre André agora enfatizava em seus sermões, mais do que nunca, o respeito que deveriam ter seus fiéis com a fé alheia e o discernimento do bem e do mal, bem como que deveriam evitar julgamentos precipitados a respeito das pessoas que não comungassem das mesmas idéias.
No dia em que resolveu tocar sutilmente na idéia reencarnacionista, durante uma missa de velório, foi duramente advertido por alguns católicos ortodoxos que não tardaram em denunciá-lo para o bispo dizendo que, além de ter idéias esdrúxulas, padre André estava enfeitiçãdo por Justino.
Em poucos dias, padre André recebeu sua trasnferência, junto à séria ameaça de interdição de seu apostolado.
Triste, foi ter com seu amigo Justino na manhã seguinte, de quem recebu palavras de incentivo.
- Justino, meu caro e estimado amigo. Até hoje evitei realizar um sonho pelo receio do ue isso viesse a causar mas, diante dos fatos, vou pedir-lhe se posso visitar sua casa de umbanda antes de deixar a cidade, durante a gira, como vocês chamam.
Com seu habitual sorriso, Justino o abraçou e falou:
- Nossa casa é de caridade e aberta a todos que a buscam. Será uma honra e um prazer recebê-lo, meu amigo querido. Lá recebrá de seus protetoresa luz e a força de que vai precisar para continuar sua caminhada.
E, assim, aquele que nascera em família católica e escolhera a missão mediúnica de sacerdote dentro da sua religião entrava na Casa de Caridade Umbandista Caboclo Ubiratan, dirigida por um sacerdote umbandista, seu amigo Justino. Lá, sua alma se reencontrava com velhos e queridos amigos de outras paragens e de outros tempos que se perdiam na história. Sua vidência acentuada agora se ampliavam naquele ambiente iluminados pelas luzes da caridade, e de seus olhos as lágrimas emocionadas rolavam. Seu corpo todo e seu espírito vibravam ao toque dos atabaques e ao cantar dos pontos que a ele soavam conhecidos.
Humildemente, aguardou por seu atendimento e, quando se ajoelhou diante do méduim Justino, incorporado por seu preto velho que pitava um cheiroso cachimbo, seus olhos se arregalaram diante da visão. Ali, na simplicidade do terreiro e com a aparência de um mestiço velho, era impossível não reconhecer no sorriso e nas palavras o seu amado instrutor e amigo espiritual que, seguidamente, lhe presenteava com sua presença na figura de um sacerdote jovem e altivo.
E dele recebeu o abraço, o alento e a promessa de continuarem pregando o verdadeiro Evangelho. Respeitando as leis da Igreja, alertariam as mentes para aquilo que O Mestre ensinou em suas andanças: o amor e o perdão incondicional. Havia a certeza de que, em cada lugar onde estivesse, estaria sendo útil aos homens e a Deus, enquanto levasse consigo a pureza de propósitos em seu coração.
No outro dia, ainda de madrugada, seu Justino aguardava junto com padre André o ônibus que o levaria para a nova morada. Na despedida, um abraço emocionado e sem palavras era a promessa de que, em algum lugar, algum dia, os dois velhos amigos se reencontrariam para novos aprendizados.
Em caminhos e situações diferentes, pelas veredas da vida, encontramo-nos seguidamente com almas afins, pois é preciso matar as saudades que nosso espírito traz, refazendo os laços que unem os corações que se amam. O verdadeiro e incondicional amor transcende o tempo e perdura pelos milênios afora. Quando o reencontro acontece, se dá como um novo renascer.


Texto extraído do livro “Vovó benta e seus Causos de Umbanda – Vol. 2 – outras histórias”Obra psicografada por Leni W. Saviscki

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