sábado, 28 de fevereiro de 2009

A verdadeira psicologia


“Os espíritos simpáticos são aqueles que se ligam a nós por uma certa semelhança de gostos e tendências.”

Enquanto a preta velha passava o galho de arruda em suas mãos, exalando o perfume forte da erva amassada que se misturava ao cheiro de fumo queimado de seu palheiro, Maria Rita se perguntava o que estava fazendo ali, se nem fé ela tinha mais. Viera até o terreiro de umbanda convidada pela sua prima, a qual acreditava fielmente que os pretos velhos iriam iluminar sua mente atordoada.
A princípio aceitou, mas, chegando naquele ambiente demasiadamente humilde para seu padrão de vida e vendo aquelas pessoas que se aglomeravam na assistência em busca de um atendimento, na sua maioria gente simples e sofrida, cujos olhos brilhavam ao soar dos atabaques, percebeu que ali não era seu lugar. Sua fé ou era demasiada pequena ou sofisticada demais para acreditar naquilo tudo, que mais lhe parecia uma peça teatral.
Psicóloga, achava-se terapeuta das almas, cuja metodologia trazida dos bancos universitários, bem como o diploma na parede, dava-lhe a sensação de superioridade diante daquela gente ignorante e pobre que por falta de recursos e de instrução, se obrigava a ter como bengala uma religião.
Mas a ciência em que tanto acreditava já havia lhe tirado as esperanças de gerar o filho tão desejado. Todos os tratamentos nas melhores clínicas do país já haviam sido procurados e, embora não houvesse nenhum problema físico constatado, nem nela nem no marido, a gravidez não acontecia. Por duas vezes tentou a inseminação artificial, e até essa falhara.
- Zi fia tá zi muito desconfiada, num é?
Assustada, despertou de seus pensamentos e tentou disfarçar a contrariedade, ao que a preta velha, amorosamente segurando suas mãos entre as dela afirmou:
- Negra velha sabe que a filha está com o coração apertado e que, por várias noites, chora de tristeza por não poder parir um filho de seu ventre.
- Como a senhora sabe disso?
- Porque negra velha está lendo isso na sua história filha, que está impressa na grande tela universal, como a história de todos os filhos de Deus está. Por sua infinita bondade, Ele nos permite esse acesso para poder ajudar aqueles que têm necessidade e, acima de tudo, merecimento. Mas quero esclarecer para a filha que isso não significa “adivinhatório” e, sim, uma ferramenta de auxílio. O ventre de uma mulher é templo sagrado para onde o Criador envia espíritos necessitados de um corpo carnal. É ali que, num verdadeiro milagre, juntam-se células para formar uma nova vida, uma nova história. É como se Ele lançasse uma semente para brotar no solo, precisando ela ser regada pelo sentimento de amor. Mas nem sempre a semente encontra solo fértil, uma vez que a falta de cuidados com este solo no passado pode ter deixado a erosão levar embora seus nutrientes. Assim, mesmo que agora seja regada pelo amor, a sementinha perece. São esses ventres que no passado não permitiram que brotassem as sementes a ele lançadas, embora fossem férteis. Ou, se as deixaram nascer, não regaram a semente com a água do amor, levando a plantinha à morte.
A essa altura do monólogo da preta velha, a mulher deixava as lágrimas escorrerem pelo seu rosto. E, em poucos minutos, a angústia que estava congestionando seu peito transformou-se em um soluço quase convulsivo, levando seu corpo todo a estremecer. Acarinhada pela preta velha, ela esquecia sua posição social, sua empáfia toda, e se despia do orgulho, deixando que a bondosa entidade a aconchegasse contra o peito, num gesto maternal. Nem ela sabia o quanto estava carente desse amor desinteressado e fraterno.
- Chore, filha. Deixe que suas lágrimas lavem sua alma.
Quando a mulher se acalmou, a preta velha continuou:
- A filha tem amor e boa vontade para receber no seu lar os filhos que Deus lhe der. Então, filha querida, deixe que outros ventres que podem parir tragam até você esses espíritos para que possa regá-los e deixá-los crescer com seu amor e cuidado.
- A senhora fala de adoção?
- Isso mesmo. E negra velha explica para a filha que nada no Universo acontece sem o conhecimento e a permissão do Grande Pai. Toda criança que chega até um lar, seja através de quem for, tem fortes ligações cármicas com aquela família. Os seus filhos já estão a caminho e só o que falta é que você e seu companheiro os aceitem, mesmo paridos por outro ventre.
Um tanto assustada, a mulher secou as lágrimas e falou:
- Mas adotar é complicado...
- Complicado, minha filha, é abandonar. Adotar é restaurar a oportunidade de sermos pais sem parirmos, assim como Deus. Abra sua mente para essa possibilidade. Não lhe falta nada para receber esses filhos. Pense, reflita e deixe que seu coração decida.
Abençoando-a, a preta velha beijou as mãos daquela mulher que há pouco havia entrado ali envolvida numa nuvem escura, criada por sua tristeza e seu orgulho, e que saía agora com luzes de esperança a iluminar seu rosto que serenava.
Nos dias que se seguiram, apesar do envolvimento com seu trabalho, a idéia de adoção foi tomando vulto, e o que lhe parecia uma coisa fora de cogitação agora era pensada com muito carinho.
Certa manhã, a pedido de uma amiga, atendeu uma senhora enviada pela Assistência Social, grávida e com um sério problema depressivo. Na entrevista com a paciente, soube que a mesma era muito pobre, já tinha mais cinco filhos e que o marido a abandonara depois que engravidou novamente. Como se não bastasse, esperava por gêmeos.
O coração da psicóloga amoleceu diante de tamanha dor e, inevitavelmente, as palavras da preta velha ressoaram em sua mente. Tratou com um carinho incomum aquela paciente e, em uma das consultas, pôde perceber o medo que ela tinha em receber mais duas crianças para se somar á sua miséria. Sem pensar duas vezes, perguntou-lhe:
- Você não quer me dar estes dois bebês para que eu os crie? Eu não posso ter filhos...
- Meu Deus, obrigada!, foi tudo o que conseguiu responder no meio do pranto que a abatia. Abraçando a psicóloga, continuou:
- Pedi tanto a Deus que um anjo de bondade me fosse enviado e pudesse assumir esses filhos que são meus, mas que as circunstâncias me impedem até de desejar. Que alívio a senhora me dá, pois serão menos dois a passar necessidade.
Passados dois meses, o lar da psicóloga recebia duas lindas meninas, cujo chorinho enchia a casa de vida. Por elas esperava um lindo quarto decorado com tudo que há de melhor e mais bonito – mas, sobretudo, esperavam dois corações ansiosos e decididos a lhes dar muito amor.
Não havia como não levar as gêmeas até a preta velha para sua bênção e para um agradecimento.
- Salve, zi fia. Dizem que morto não chora, mas nega véia mesmo aqui no mundo dos mortos se emociona diante da grandeza de que é capaz o amor de nosso Pai, que permite endereçar a cada filho, na hora certa, o presente adequado. Flores que foram abandonadas outrora, que murcharam e morreram, mas que voltam como novas sementes para enfeitar as mesmas vidas. Que Nosso Senhor Jesus Cristo possa abençoar a essa “reunião” de vossos espíritos.
Os dois bebês, que dormiam no colo dos pais, desdobrados em corpo espiritual, sorriam felizes ao receber um banho de energias em forma de gotículas douradas. Relembravam que outrora, através deste tratamento, seus corpos astrais dilacerados pelo aborto foram curados.

Saravá, Vovó Joaquina!
Sarava o seu conga!
Ela vem lá de Aruanda
Pra rezar seu patuá.

Texto extraído do livro “Vovó benta e seus Causos de Umbanda – Vol. 2 – outras histórias”
Obra psicografada por Leni W. Saviscki